Blog dos alunos da turma III da Especialização em Semiótica Aplicada à Literatura e Áreas Afins da Universidade Estadual do Ceará (UECE)

domingo, 12 de dezembro de 2010

Memória de leitura de "Se Um Viajante Numa Noite de Inverno" por Ana Germana P. Rodrigues


AULA 9 – Se um viajante numa Noite de Inverno, de Ítalo Calvino – 27/11/2010.
Aluna: Ana Germana P. Rodrigues.

            Se um viajante numa Noite de Inverno, de Ítalo Calvino, é um livro bem diferente dos que já li. O primeiro capítulo pensei que fosse uma espécie de prefácio da editora. Ao continuar sua leitura, percebi que não: que essa análise sobre o “ler” e o “escrever” uma história, sobre as relações entre autor, narrador e leitor são o que constroem, literalmente, o enredo deste livro. Sim, pois, inicialmente, eu havia feito anotações com a seguinte separação: “capítulos de ‘enredo’” seriam os que contavam uma história que, pelo visto, não tinha continuação; e “capítulos do Leitor” seriam os que contavam a história do Leitor e de Ludmilla, a Leitora, e o rumo que a vida deles estava tomando ao iniciarem a leitura deste romance (e também a vida que tinham antes), além de suas reflexões sobre as histórias que liam e o porquê de elas não estarem concluídas.

            Modificando agora a minha análise, acredito que posso denominá-los de “capítulos com início de romances” e “capítulos de ‘enredo’”, pois estes têm continuidade, com os mesmos protagonistas e com outras características “tradicionais” de uma narrativa.

            Sobre os “capítulos com início de romances”, inicialmente, pensei que o narrador-personagem (masculino) era a mesma pessoa, que o que ele contava em cada capítulo era apenas um episódio da sua vida de viajante: por ter passado/vivido por vários lugares, conhecera várias pessoas e se deparara com diversas situações. Talvez... Mas o que consegui encontrar em comum a todos eles foi (com pequenas diferenças em decorrência das situações): as mulheres de cada capítulo (cada um tem uma) normalmente são as que conduzem (ou pelo menos pensam que conduzem, ou mesmo são apenas uma “desculpa” do narrador – como em “Olha para baixo onde a sombra se adensa”) as atitudes do narrador-personagem. Normalmente, elas são o objeto de desejo de dois homens (um deles é o narrador-personagem), ou pelo menos em algum momento da narrativa alguém pensa isso – como em “Se um viajante numa noite de inverno”, no qual o doutor Marne pensa que o viajante estaria cortejando (ou sendo cortejado pela) sua ex-mulher, mas o nosso narrador não conta nenhuma relação “mais concreta” que possa ter tido com ela a não ser a do favor que ela o faria.

            E sobre esse capítulo “Se um viajante numa noite de inverno”: o autor continua (em relação ao que escreve no capítulo 1) a falar sobre a relação entre autor e narrador, sobre o ato de fazer o romance, ao mesmo tempo que vai contando o enredo deste “início de romance”: “O romance começa numa estação ferroviária [...]” (p. 18); “Aqui, o romance transcreve fragmentos de conversa que parecem servir apenas para representar a vida cotidiana de uma cidade de província.” (p. 25); 

Se não falo com ninguém, deixo marcas, porque me qualifico como alguém que não quer abrir a boca; se falo, deixo-as também, porque toda palavra pronunciada permanece e pode reaparecer a qualquer momento, com ou sem aspas. Talvez por isso o autor acumule suposições sobre mais suposições, em longos parágrafos sem diálogos, para que eu possa passar despercebido e sumir numa espessidão de chumbo densa e opaca. (p. 22)


E parece confessar uma identificação entre autor e narrador-personagem:

Isso é tudo que você sabe sobre mim, mas é suficiente para que possa sentir-se levado a investir parte de si próprio neste eu desconhecido, assim como fez o autor, que, sem ter tido a intenção de falar de si mesmo, decidiu denominar “eu” sua personagem quase para subtraí-la aos olhares, para não precisar nomeá-la nem descrevê-la, porque qualquer outra denominação ou atribuição a teria definido melhor que esse despojado pronome; até mesmo pelo simples fato de escrever a palavra “eu”, o autor se vê tentado a pôr neste “eu” um pouco de si próprio, um pouco daquilo que sente ou imagina sentir. (p. 22)


Mas será que esse “autor” ao qual o narrador se refere é o próprio Ítalo Calvino? A minha ideia é de que não. Provavelmente, esse “autor” é um outro narrador (onisciente, não-personagem, para melhor entender), se levarmos em consideração que o “nosso” autor é o Ítalo Calvino que está contando sobre o ato de escrever de um autor (qualquer). E Ermes Marana fala sobre isso a Silas Flannery: “O autor de cada livro não é mais que uma personagem fictícia que o autor real inventa para transformar em autor de suas ficções.” (p. 184)

            Confesso que toda essa metalinguagem já estava me cansando um pouco, principalmente quando a história de “Se um viajante numa noite de inverno” fora interrompida justamente para contar uma “meta-história”, que está nos capítulos numerados (e que chamei de “capítulos de ‘enredo’”). Depois entendi que essa “meta-história” é justamente “a” história deste livro.

            O capítulo 2, inclusive, antecipa a angústia sentida pelos Leitores (protagonistas deste livro) e que eu também senti, mas apenas quando li “Sem temer o vento e a vertigem”. Apenas senti esta angústia dois títulos depois do que os Leitores sentiram porque eu estava tentando ver, em qualquer detalhe (principalmente a respeito da família Kauderer), que se tratava da mesma história, do mesmo narrador-personagem, apenas contando episódios diferentes de sua (mesma) vida. Cheguei a pensar até mesmo: “Esses Leitores foram precipitados em achar que o livro estava com páginas trocadas de outros livros. Trata-se da mesma história, em momentos diferentes da vida desse viajante...” No entanto, depois de ler “Sem temer o vento e a vertigem”, percebi que seria bastante forçoso da minha parte continuar pensando assim. Por isso, resolvi apenas procurar semelhanças entre o enredo dessas histórias (já citadas).

            E foi justamente a Leitora, Ludmilla, quem me alertou sobre a real intenção deste livro:

– O romance que mais gostaria de ler neste momento [...] é aquele que deveria ter como força motriz o desejo de contar, de acumular história sobre história, sem pretender impor uma visão do mundo, mas apenas fazer você assistir ao crescimento do romance, como uma planta, um entrelaçado de ramos e folhas...” (p. 96-7)


            No entanto, apesar de admirar essa intenção do livro, não consigo deixar de confessar a minha frustração sempre que cada “capítulo com início de romance” acabava, e eu não conseguia saber o restante (ou mesmo o início, com um flash-back) da história. Além disso, também considero que Calvino, ao deixar como nome do livro justamente o mesmo nome do primeiro “capítulo com início de romance”, iludiu-me (e talvez isso tenha acontecido com outros leitores) de que haveria uma possível continuação dessa mesma história no decorrer do livro. Por isso, ainda fiquei páginas e páginas desejando ler essa continuação e até mesmo “forçando” uma ideia de complementaridade entre os (dois) capítulos seguintes e este.

            Quando fui lendo os “capítulos de ‘enredo’”, sobretudo a partir do terceiro, comecei a ficar curiosa sobre a possível existência dos prováveis autores das histórias até então lidas nos outros capítulos – Bazakbal, Ukko Ahti, Viljandi, Bertrand Vandervelde, Silas Flannery, Takakumi Ikoka, Calixto Bandera, Anatoly Anatolin – e da Címbria/Ciméria. Fiz uma busca pela Internet e, sobre esses autores, só encontrei quando estavam referindo-se ao livro de Ítalo Calvino, e, sobre Címbria/Ciméria, encontrei histórias não-fictícias delas, mas sem muita relevância para o que li no livro.

            Sobre o enredo em torno de Leitor e Leitora, confesso que não estava interessada. Pensei até mesmo em pular os capítulos numerados. No entanto, ao ler o capítulo 6, no qual sabemos sobre as traduções e as cartas de Ermes Marana para a editora, comecei a me sentir mais atraída pela narrativa e a perceber que esses capítulos estavam tendo mais destaque, para mim, do que os de “início de romances”. Entendi também que a numeração dos “capítulos de ‘enredo’” quer justamente dizer que eles, sim, têm sequência e constituem a história principal que estou lendo. Pensei, então, em pular os “capítulos com início de romance”, pois não queria mais me frustrar com o fato de não saber o final da história e por achar que eles continuariam com o mesmo esquema: um narrador-personagem (masculino) cujo objeto de desejo e impulsionador de suas atitudes era uma mulher, também desejada por outro homem. No entanto, esse “outro homem” já não aparece em “Numa rede de linhas que se entrelaçam”. Além disso, mesmo que estivesse muito apressada em terminar de ler este livro para iniciar este trabalho, não consegui dar esses “pulos” na leitura, pois, nos capítulos numerados, Leitor e Leitora estavam sempre se referindo à história do capítulo que o sucedia e/ou do que o antecedia, e a minha curiosidade de lê-la também, mesmo já sabendo a frustração que teria novamente no final, só aumentava.

            Também nos capítulos numerados existe um “triângulo amoroso” semelhante ao que percebi nos “capítulos com início de romance”. No entanto, o narrador não é personagem, mas é observador. 

Esse triângulo amoroso só começou a ser revelado, de fato, no capítulo 7, quando o Leitor descobre que Ludmilla – a Leitora, e por quem estava apaixonado – tivera um romance com Ermes Marana. Digo “de fato” porque o Leitor parece o tempo todo querer encontrar em qualquer figura masculina que tenha alguma relação com Ludmilla algum romance entre eles, e o Leitor demonstra ciúme ao cogitar essas possibilidades (e ao saber do “fato”). No entanto, parece que esse relacionamento não fora completamente encerrado, pelo menos não da parte de Ermes Marana, o qual sente ciúmes de Ludmilla com as suas leituras e com seus respectivos autores. Por isso, o que ele tenta fazer é derrotar esses autores, falsificando suas obras:

Ermes Marana – desde sempre, porque seu gosto e talento o impeliam a isso, mais ainda depois que sua relação com Ludmilla entrou em crise – sonhava com uma literatura composta exclusivamente de obras apócrifas, de falsas atribuições, de imitações, contrafações e pastiches. Se essa idéia conseguisse impor-se, se uma incerteza sistemática quanto à identidade de quem escreve impedisse o leitor de abandonar-se com confiança – confiança não tanto no que é contado, mas na voz misteriosa de quem conta –, talvez nada mudasse no exterior edifício da literatura. Mas, por baixo, nos alicerces, lá onde se estabelece a relação entre leitor e texto, algo mudaria para sempre. Então Ermes Marana não mais haveria de sentir-se abandonado por Ludmilla quando ela estivesse absorta na leitura: entre o livro e ela sempre se insinuaria a sombra da mistificação, e ele, identificado com cada uma das mistificações, teria confirmada sua presença. (p. 163)
               
Esse ciúme também é manifestado, em relação à Ludmilla, pelo escritor Silas Flannery: 

o autor que continua a entrar na intimidade dessa jovem, ao passo que eu, o eu de aqui e de agora, com minha energia física que sinto manifestar-se muito mais indestrutível que o impulso criativo, dela estou separado pela imensa distância de um teclado datilográfico e de uma folha branca no carro da máquina. (p. 195)

“Numa rede de linhas que se entrecruzam”, por sua vez, é o primeiro dos “capítulos com início de romance” que parece apresentar um final, além de também não apresentar um outro homem para disputar a mulher.

No capítulo 8 – “Do diário de Silas Flannery”, deparamo-nos, mais uma vez, com a reflexão sobre o ato de escrever, principalmente nas angústias que o escritor pode ter ao (ter que) fazer isso: “Como eu escreveria bem se não existisse! Se a folha branca e a efervescência das palavras e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique que é minha pessoa!” (p. 175)

Neste capítulo, encontramos também, variando de narrador-personagem para narrador-observador, a reflexão sobre o que seria um “escritor produtivo” e um “escritor atormentado”:

[O escritor atormentado] considera o escritor produtivo nada mais que um hábil artesão, capaz de confeccionar uma série de romances que atendem ao gosto do público (...). Não é apenas inveja o que sente, é também admiração, sim, admiração sincera: no modo com que aquele homem põe todas as suas energias no escrever, há certamente uma generosidade, uma confiança no ato de comunicar, de dar aos outros aquilo que esperam dele, sem interpor problemas de consciência. (p. 177)

Ao passo que o “escritor produtivo”: 

Às vezes, parece-lhe que vê [o escritor atormentado] caminhar sobre uma corda suspensa no vazio, e é tomado por um sentimento de admiração. Não só admiração: de inveja também, porque sente que seu trabalho é limitado e superficial se comparado ao que o escritor atormentado está procurando. (p. 178)

E, ainda neste capítulo, o narrador-personagem escreve, revelando o que vemos na(s) nossa(s) narrativa(s): “Eu gostaria de poder escrever um livro que não fosse mais que um incipit, que conservasse em toda a sua duração as potencialidades do início, uma expectativa sem objeto.” (p. 181) E, sobre isso, Calvino diz, no Apêncice, que não se tratam exatamente de histórias “inacabadas”, mas sim: “[trata-se da problemática do] ‘acabado interrompido’, do ‘acabado cujo final está oculto ou ilegível’, tanto no sentido literal como no metafórico”.

No livro, há também a abordagem sobre a dependência, em relação ao autor, do Leitor para saber se o livro que está lendo é falso ou não: ele considera que só conseguiria desvendar isso se recorresse ao autor (ou pelo menos ao autor cujo nome está escrito no livro que está lendo). Isso se contrapõe ao que Ludmilla pensa, segundo Lotaria, sua irmã: “Ludmilla afirma que é melhor não conhecer o autor pessoalmente, pois sua pessoa real nunca corresponde à imagem que se faz dele ao ler os livros” (p. 190)

Mas confesso compartilhar da mesma curiosidade que o Leitor teve e, por isso também, reflito: de que se serviria a teoria literária, se nós, também leitores, não tivéssemos a curiosidade de ir mais além dessa linha?

Enfim, o terceiro leitor que se encontrava na biblioteca, do capítulo 11, resume a seguinte ideia: “a leitura consiste numa operação sem objeto ou que seu verdadeiro objeto é ela própria. O livro é um suporte acessório ou, mesmo, um pretexto.” (p. 258)

E um sexto leitor parece desvendar, e juntar, os “capítulos com início de romance” que compõem este livro:
Se um viajante numa noite de inverno, fora do povoado de Malbork, debruçando-se na borda da costa escarpada, sem temer o vento e a vertigem, olha para baixo onde a sombra se adensa numa rede de linhas que se entrelaçam, numa rede de linhas que se entrecruzam no tapete de folhas iluminadas pela lua ao redor de uma cova vazia. “Que história espera seu fim lá embaixo?” (p. 261)

Mas o final desta história dos “capítulos de ‘enredo’” parece que nos foi dado só para satisfazer um clichê e a vontade, que o Leitor tanto tinha, de finalizar uma história.

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